Aposentadoria e Metamorfose
Aposentar é uma palavra ambígua. Pode ser entendida como dar pouso, agasalhar, abrigar. E também significar por de lado, desprezar : “vou aposentar esta roupa”. “Aposentei essas idéias”.
Acolher e afastar, aceitar e rejeitar. Esses opostos habitam o conceito de aposentadoria – a inatividade ou reforma no trabalho - e fazem parte das angústias comuns deste período.
Em certa fase da vida de um trabalhador, aposentar-se era uma realidade à distância, como um horizonte que cada um vislumbra e pinta com as suas cores preferidas. E essas cores, sempre brilhantes, ficam fazendo parte de um sonho acalentado com carinho, lacrado em uma caixa e colocado em uma prateleira especial, onde permanece por anos e anos, indiferente às modificações do tempo. “Vou fazer tudo o que quiser quando me aposentar!” O futuro sorridente e fantasioso torna-se um retrato do plano concebido nesta época. É, então, congelado e assumido como definitivo.
Enquanto isso, o indivíduo mergulha no trabalho e ali adquire uma nova identidade. Pode tornar-se o trabalhador incansável, o “boa - praça”, o líder, o “que deixa tudo para amanhã”, o “conselheiro”, o “companheirão”, o insubstituível, etc. Esta identidade, que vai sendo formada aos poucos, torna-se uma “segunda pele” daquela pessoa. “Paulo? Pode contar com ele, ele vai lhe ajudar!” E ai de Paulo se não o fizer, nem os outros nem ele próprio saberão perdoar a falha. Identificou-se com aquele papel, que é parte rígida e imutável de sua maneira de ser. Tão imutável quanto aquele sonho que ficou guardado na prateleira.
A MÁSCARA DE FERRO
A história do Máscara de Ferro situa-se entre o mistério, a realidade e a lenda. Fala de um homem que viveu de 1699 a 1703. Era irmão gêmeo de Luiz IV e foi afastado da corte pelo pai ao nascer, por temor de disputas pelo trono. Ao saber de sua existência, Luiz IV condenou-o, até o fim de seus dias, à prisão e ao isolamento. Consta que, por sua semelhança com o Rei, foi-lhe colocada no rosto uma máscara de ferro. Morre o Rei e o seu sucessor, tomando conhecimento do que acontecera, manda chamar aquele homem e ordena que seja retirada a máscara. Esta, entretanto, havia moldado o rosto. Homem e máscara eram a mesma pessoa, não podiam ser diferenciados.
O hábito penetra em nós como uma máscara de ferro. Entranha em nossa pele, em nossa alma. Nos confunde a um ponto que não sabemos mais quem somos e esquecermos quem fomos.
QUASE CHEGANDO
Passa-se o tempo e a aposentadoria se aproxima. Aquela caixa, embolorada e poeirenta, ressurge, como uma garantia de que temos uma saída . Dentro dela os mesmos conteúdos, como cartões postais esmaecidos com aqueles semi-tons das velhas fotos. A caixa é aberta e fechada, enfim a aposentadoria ainda não chegou e é melhor deixar as coisas como estão. A caixa é bonita como é, cheia de fantasias. Vamos deixar para depois, por enquanto temos tanto por fazer!
Nesta fase, uma primeira abordagem psicoterapêutica é capaz de auxiliar a travessia, sem crises, de uma etapa geralmente conflitiva. Nela se defrontam um lado acostumado a uma forma estática de expressão e outro lado que precisa mudar. Esta mudança desperta os medos e ameaças comuns a tudo que é novo e , paradoxalmente, tem como ponto de referência o que está imobilizado nos sonhos antigos. Esclarecer essas contradições, adequar velhos conceitos à conjuntura atual e, a partir dela, traçar novos planos são tarefas de terapias voltadas para a pré-aposentadoria.
E AGORA?
Os fatos podem ser postergados, mas toda negação, um dia, é confrontada com a realidade. E a aposentadoria chega, finalmente.
A primeira resultante do confronto entre comportamentos habituais e a necessidade de modificá-los gera um sentimento de estranhamento. O indivíduo não tem mais a rotina habitual nem as obrigações que tantas vezes sufocavam, mas que foram constituindo e solidificando aquele ser único, tão diferente e ao mesmo tempo tão semelhante a todos os que vivem a mesma situação . Único em sua forma de ver o mundo e de situar-se diante dele. Mas aquele mundo sumiu, foi deixado para trás e a pessoa também se acha deixada para trás, rejeitada e sem chão.
Estes fatores geram uma crise de identidade tão significativa quanto a da chegada da adolescência, quando o ser humano não é mais criança e ainda não é adulto. O adolescente sente-se sem identidade . Busca várias formas de escapar das angústias dessa crise para sentir-se inserido, acolhido, definido (aposentado) em nova fase. Daí as buscas erráticas dos adolescentes, uma procura sempre renovada de uma saída do conflito de não saber mais quem se é. O ser humano precisa de algo que o defina, que o situe como pessoa, que lhe garanta : “eu sou isso e não aquilo”.
O aposentado também procura definir-se e lança mão de suas defesas. Em primeiro lugar, abre a caixa, sofregamente e deseja que a realidade se adapte aos seus desejos. Os sonhos que ali estão , quando postos em prática, irão encontrar uma dupla resistência. Em primeiro lugar, a personalidade se estratificou e , pesada, não suporta grandes vôos. Segundo, a realidade se impõe. Freqüentemente, ela é inteiramente diversa do que foi planejado um dia : “...vou fazer tudo o que quero”, como, se estou amarrado por problemas de saúde, ou se o dinheiro não dá , ou se, simplesmente, não sei o que fazer da minha vida?
Faço algumas tentativas, mas elas falham. Meus planos eram viajar, conhecer o mundo? Cansei de viajar, gastei o meu dinheiro e não fui a lugar algum. Pior, aquela poltrona e aquela TV me atraem tanto! Pensava fazer novos amigos, mas todos parecem ter os seus grupos. Mesmo os velhos colegas de trabalho continuam juntos e não há mais lugar para mim. Quando me aposentei, percebia a simpatia dos outros, freqüentava sempre os lugares habituais. Depois, fui percebendo que se afastavam, não dividíamos os mesmos assuntos, parecia que estavam cansados de mim e para falar a verdade, eu também estava cansado. Em casa, os filhos cresceram e quase não percebi. Agora têm idéias próprias, é como se eu estivesse superado, velho. Minha mulher está sempre ocupada, às vezes insinua que estou atrapalhando, que devia procurar o que fazer. Mas fazer o que, com o mercado do jeito que está? Enfim, trabalhei a vida inteira e tenho o direito de descansar. Só que não consigo, eu mesmo acho que ainda sou muito novo para parar, tenho muita experiência que posso transmitir. Como puderam fazer isso comigo, como, como? Logo comigo, que dei o meu sangue, que vivia para o trabalho, que nunca pensei em mim?
OS DOIS BALDES
Um homem muito sábio morava em um lugar distante e deserto. Até chegar ao rio, onde ia buscar água, caminhava um bom pedaço. Ele possuía dois baldes, um novo e um velho. Amarrava cada um deles no extremo de uma vara, punha nas costas e seguia o seu caminho de ida e volta, dia após dia.
O velho balde tinha um furo em sua base, fruto dos anos de trabalho. Estava cansado e deprimido, não conseguia deixar de comparar-se com o balde novo e brilhante. Não entendia como o dono continuava a levá-lo ao rio. Seria por pena? Será que ele não se apercebia de que o furo fazia com que quase toda a água se perdesse pelo caminho? Todos os dias aquele balde sentia-se inferior e inútil, ao perceber o outro cheio de água e feliz.
Um dia, não resistiu e falou com o seu dono, mesmo sabendo que aquilo poderia representar o risco de não mais ser levado ao rio. Seria o fim de sua existência como balde.
O dono sorriu mansamente e falou: “Amanhã, quando estivermos voltando para casa, tenho uma coisa muito importante para mostrar-lhe”.
Assim o fez. Estavam no caminho de volta e o homem disse: “Veja o seu lado do caminho. Tudo isso é fruto das gotas d’água que você deixa cair. Nada disso existiria , se não fosse você”. O balde olha e vê um caminho florido que vai do rio até a casa.
Todos nós temos uma função que pode ser útil para nós e para os nossos semelhantes. O fundamental é que reconheçamos a validade do nosso papel no mundo e saibamos que este papel pode mudar de acordo com as circunstâncias. O que diferenciará o nosso nível de satisfação é a flexibilidade que possamos ter, fruto de novos olhares e novos conceitos. O processo de revalorização é como um renascimento, que nos levará a níveis insuspeitados de auto-respeito e de melhora em nossa qualidade de vida.
FERNÃO GAIVOTA
Fernão Capelo fazia parte de um bando de gaivotas. Não “pertencia” ao bando, pois pensava diferente, desejava coisas que os outros não queriam nem entendiam. O que desejava, acima de tudo? Voar, voar mais alto , cada vez mais alto. O bando preferia ficar na praia, pescando quando a fome surgia, vendo o tempo passar. Fernão lançou-se aos céus. E voou, voou mais alto. E caiu. Voou novamente, caiu outra vez. A cada vôo subia mais e seguia-se nova queda. Foi caindo e aprendendo a voar , cada vez mais alto . Aprendendo também a não cair mais nem temer a queda. Foi ampliando a sua visão do mundo. E ensinando às outras gaivotas que se pode tentar, vencer o medo de mudar.
Dentro de cada um de nós existem o bando e a gaivota. O lado bando que se acomoda, não questiona, que vive para sobreviver. Que tem medo, muito medo de tudo que é novo.
Existe, também, o lado gaivota, que investe no novo, que tenta, aprende a vencer o medo . Aprende a criar. Persiste. E, sobretudo, entende que o problema não é cair, desde que consiga levantar.
TAMBÉM POSSO VOAR
Voar não significa montar nova caixa de sonhos e sim compor um novo quadro, com novas cores, muitas delas insuspeitadas e surpreendentes. Significa reprogramar o futuro, partindo dos interesses e motivações de cada um.
As tintas para este quadro são o desejo (o que eu gostaria de fazer) , o viável (o que me é possível tentar), a persistência (como ampliar os meus limites) e a viabilização (o que preciso fazer).
Misturar estas tintas é compor uma sinfonia. É reviver o conceito de prazer, associando a consciência crítica à revisão de planos abandonados. Isso permite a visualização de novas metas. Estarão em choque as necessidades de optar, a consciência de que opção representa perda, a coragem de buscar mesmo sem garantia de conseguir.
Para esta transição o trabalho psicoterapêutico de pós – aposentadoria tem-se mostrado eficaz em reduzir a crise e acompanhar o processo de transição até o momento em que o indivíduo sinta-se seguro em novos vôos, capaz de pintar novos quadros e de compor novas sinfonias.