Solidão - Patologia ou Normalidade
Costuma-se dizer, genericamente, sobre uma pessoa que está triste, que ela está deprimida. O termo depressão é insuficiente para explicar, teórica e clinicamente, o grande número de fenômenos que são as depressões ,nas suas diversas formas, causas e tratamentos.
Da mesma forma, solidão é uma palavra genérica. Ao olharmos a placidez de uma praia deserta, não estamos vendo a grande quantidade de vida que habita sob aquelas areias. Ao olharmos o Rio Tietê, carregado de espumas borbulhantes, atraindo turistas, podemos até achar uma certa beleza no espetáculo. No entanto, a poluição daquelas águas não permitem que a vida ali se desenvolva. É um rio morto.
Transpondo para nós a analogia, movimento nem sempre é sinal de saúde interior, bem como quietude e isolamento nem sempre são indicativos de que algo "morto" nos paralisa.
Outro dia, ouvia o cantor Plácido Domingo referir-se ao seu trabalho. Falava do quanto, nos momentos de estudo, de criação, precisava estar só.. Assim, ele conseguia a paz necessária para desenvolver os seus objetivos. E, como estudava e criava muito, precisava freqüentemente estar só.
Com que olhos vemos aquele monge, horas imóvel em seu catre, entregue às suas orações? Diz ele : estou em contato com Deus, pedindo pela humanidade.
Então, ele não se sente só, nem fora de sintonia com os seus semelhantes.
Sente-se coerente com a escolha que fez para dedicar a sua vida.
Aqueles que precisam de introspecção para elaborar os seus pensamentos, idéias, teorias, antes de levá-las à discussão e análise dos demais, estão muito longe de desenvolver uma patologia. Deles nascem grande parte do que conhecemos hoje.
Quantas vezes vemos a frase "ouvir o silêncio"? Ela indica esse estado de abstração que nos permite mergulhar em nós mesmos, para descobrir novos mundos, novos significados para os mundos velhos, ou lugares para enterrar os mundos mortos.
Assim, solidão não significa necessariamente uma patologia. Mas, às vezes, o é. Quando?
O homem é um ser gregário, desde as suas origens. Desde as cavernas, precisava de outros para conseguir alimento e enfrentar as feras que os ameaçavam. Mais tarde, para cultivar a terra. Para mudar-se para outras terras, quando as anteriores já estavam esgotadas ou quando as condições climáticas assim o exigiam. Muitas vezes, em hordas, atacavam outros povos, para tomar-lhes as terras e as mulheres. E esses povos, por sua parte, precisavam unir-se, para enfrentar os invasores.
Por aí foi seguindo a nossa evolução. Precisamos do outro para nos situar como indivíduos, pois o primeiro olhar que temos de nós mesmos é o olhar do outro. Quando a adolescência e seus conflitos nos afastam dos pais, é no grupo de iguais que encontramos a "nova família" que irá, após turbulências várias, tornar-nos capazes de vencer a simbiose original e criarmos a "nossa família". Precisamos do outro para a reprodução (hoje, não necessariamente), para validar o nosso trabalho, para amar, e tantas coisas mais.
Mas, para algumas pessoas, a aproximação do outro causa sofrimento, é uma ameaça. Vemos, desde muito pequenas, crianças autistas incapazes de interagir com o meio, Outras, não conseguem participar das brincadeiras comuns da infância porque se acham feias, pouco dotadas. Sobretudo, têm medo. E se isolam. A mínima segurança que encontram, quando encontram, parte dos pais.. Aí, agarram-se a eles e a simbiose se encarrega do resto, ou seja, há uma retroalimentação mútua, que pode durar a vida inteira: os pais não largam os filhos e estes não largam os pais. Vão formar as famílias simbióticas, que se fecham em si mesmas, e para as quais todos os que não pertencem a elas são vistos como hostis e amedrontadores, inimigos que precisam ser afastados.
E aqueles que, nem nos pais, encontram um porto seguro? Às vezes, a violência doméstica, as várias formas de abandono, como a rejeição sutil ou aberta, a excessiva dedicação dos pais ao trabalho, algumas separações, mortes, os deixam à mercê de seus conflitos e suas defesas. Fecham-se em si mesmos como em um castelo, como se ali encontrassem proteção. Povoam o interior desse castelo com seus fantasmas e o exterior com outros fantasmas. Como vivem em função do medo, dedicam sua energia em construir muralhas que, quando se mostram insuficientes diante da ameaça , levam a mais e mais muralhas. E, como continuam atacados pelos conflitos, desde que os fantasmas internos não dão trégua, às vezes, timidamente, descem a ponte levadiça e saem para enfrentar o mundo. Mas, qualquer movimento do lado de fora é a confirmação dos temidos fantasmas, e eles se refugiam outra vez.
Quantos casos de paranóia têm um desenvolvimento parecido! O inferno é o outro, só que o outro está dentro de mim, porque é criação minha. Então, não consigo fugir do inferno. Vou, então , setoriza-lo: parte do inferno não causa ameaça, esta limpo, livre. Projeto o poder de destruição do inferno em alguma parte específica : uma pessoa, uma situação, uma causa, um partido político, etc., que irá representar a totalidade dos meus medos raivas e ataques. Aí, precisarei destruir este representante. Só que, caso eu o consiga, como ele era apenas um símbolo, irá ressurgir em outro lugar.
E os que se sentem inferiores? Por maior potencial que tenham, não dão crédito a sí próprios. Como projetam nos outros esses sentimentos, sentem-se diminuídos por eles, discriminados. Só há uma fuga: o isolamento, a solidão.
Mas o potencial clama por expressão : dentro em pouco essa pessoa já está outra vez sob o crivo de seu próprio julgamento projetado. Vive num vai-e-vem, sem descanso e sem fim.
Como vimos, o mesmo nome pode ter diversos significados. Momentos cruciais de nossas vidas são absolutamente solitários, Por mais que a mãe ame o filho que nasce, ele terá no nascimento , no seu primeiro contato com o mundo exterior, uma experiência única, indivisível. Aquela mãe sentirá aquele nascimento de uma forma pessoal e diferente para cada filho. Ninguém sentirá a sua dor e o seu prazer. Ninguém saberá exatamente a intensidade de nosso orgasmo, ou da nossa frustração por não tê-lo. Ninguém viverá a nossa morte.
A solidão é compatível com a criatividade, com a religiosidade, a introspecção e a paz. Mas também pode representar o pavor, o recuo diante da mínima iniciativa de aproximação.
Distinguir essas diferenças pode levar-nos a entender tantos casos que precisam de atenção, estudo e ajuda.
Simone Mello Suruagy - Psicóloga