Questionando o Relacionamento Afetivo
O relacionamento afetivo é um dos temas mais discutidos e controversos no tempo confuso em que vivemos. Ora ouvimos abordagens ligeiras, como se esse fosse um tema resolvido nesse início de século, onde relacionamentos afetivos e sexuais parecem sinônimos. Outras vezes é empregado como se definisse um grupo coeso de amigos que se bastam como fonte de intimidade coletiva. Será que perdemos de vez a noção do que significa este sentimento tão inerente e necessário a todos nós? Será mesmo difícil ou impossível encontrar alguém com quem possamos construir pontos em comum que justifiquem as vantagens de uma convivência e ao mesmo tempo as diferenças e mal-entendidos inerentes à individualidade de cada um? Será que o relacionamento afetivo deixou de ser necessário quando tantas outras demandas parecem substituí-lo?
Desde quando o relacionamento afetivo é importante para o ser humano?
Desde o nascimento. A necessidade de acolhimento, aconchego, apego, ou qualquer nome que seja dado para o contato do indivíduo com alguém que o complete já está aí, tão cedo na vida. O conjunto mãe-criança é entendido como indissociável e ninguém discute o quanto um é indispensável para o outro.
Mas, quando o relacionamento afetivo passa a ser um problema para o ser humano?
O indivíduo cresce, amadurece, porém a antiga necessidade de apego continua. Muda o objeto, agora já não é mais a mãe (pelo menos, nem sempre) o alvo do desejo.
Quem é, então?
Esta indagação já foi muito fácil de responder. Até poucas gerações atrás, as regras sociais eram claras, rígidas e tinham muito poder sobre a conduta das pessoas. Transgredi-las era a causa de punição e exclusão. Como conseqüência, as regras eram obedecidas sem contestação ou quebradas sob o preço de cautelas, mentiras, stress, etc.
Ora, essas regras definiam como namorar, casar (às vezes até com quem), manter uma família, cuidar dos filhos. A união era considerada indissolúvel, mesmo que a lei permitisse a separação. Assim, uma vez escolhido o seu par afetivo, isto significava uma escolha para toda a vida, mesmo quando “afeto” não definisse mais aquela relação, às vezes até o contrário. “Relacionamento afetivo” era “ter alguém a quem chamar de seu”, como uma posse. Ser solteiro além de uma determinada idade era condenável, prova de algum desajuste. Filhos fora do casamento era vergonhoso, e essas crianças eram discriminadas pelas pessoas de “bom tom”. A filha mulher podia ser viúva, descasada nunca.
Tudo mudou, não foi?
Sim, e de forma muito rápida e radical. Os parâmetros foram quebrados e as regras sociais nesta área não mudaram, elas apenas não existem.
Como assim?
Hoje, “casamento” é uma palavra relativa para uma relação relativa, que já inicia com a sombra da separação ao menor deslize, seja comportamental, de alguma expectativa não correspondida, etc. Filhos pertencem a várias famílias que convivem e se afastam provocando novos grupos de filhos, e assim sucessivamente. Você pode optar por não ter filhos, ou tê-los sem que eles precisem ter um pai ou uma mãe, graças aos progressos científicos da fertilização. Ser solteiro por toda a vida é uma opção sua que todos respeitam, como morar com os pais para sempre. Você não será discriminado se for promíscuo ou solitário. A sexualidade, homo ou hétero, é livre. Você pode ter quantos relacionamentos quiser ou puder, ou não tê-los.
Então, hoje é mais fácil desenvolver um relacionamento afetivo satisfatório, não?
Aí está o paradoxo. A liberdade afetiva não veio associada à sabedoria de usá-la com prazer, tranqüilidade e respeito pelo ao companheiro. Em grande parte dos casos, o relacionamento afetivo é mais uma guerra afetiva, uma competição. Os papéis rígidos de outros tempos foram pelos ares e no lugar ficou uma grande confusão. Homens e mulheres têm ao mesmo tempo desejo e medo de se relacionarem, e o medo prevalece, sob várias formas: ou pela solidão ou pela eleição de inúmeros parceiros. Ora, se estou com muitos, não estou com nenhum e não preciso ter medo.
Medo de que?
Medo de pertencer, de perder a liberdade. Medo de escolher e perder as outras oportunidades que estão ao meu dispor. Medo de me apaixonar e ficar escravo, como o foram meus pais e avós. Aqueles tempos idos deixaram marcas, eles não voltarão jamais, só que ainda não descobrimos novas formas satisfatórias de construir um relacionamento afetivo Enquanto isso, o fator referido no início, isto é, a necessidade inata de apego, continua do mesmo tamanho. Isto é, estamos num conflito.
Por que, então, parece que todo mundo está numa boa?
Por várias razões. Porque o excesso de liberdade atordoa, tendemos a confundi-lo com onipotência. Me dá a ilusão de poder, de não depender de ninguém e de poder usar, sem compromissos, todos que me agradem. Posso viver num “faz de conta”. Estou só, sem um afeto sólido, mas, como tenho ao meu dispor uma multidão de conquistas, “faço de conta” que estou feliz.
Além disso, os padrões afetivos exigidos pela sociedade ainda não encontraram novos parâmetros, mas já foram substituídos por novos valores que, hoje, são considerados importantes, e nos quais o ser humano joga todas as suas energias: dinheiro, prestígio, conquistas profissionais, sucesso. Mas isso é outra história...
Simone Suruagy – Psicóloga