Crise

fotodistualimeA crise traz para o ser humano, ao mesmo tempo, uma vivência de destruição
e uma oportunidade de renovação. Visualizar e entender este duplo aspecto nos permite, como terapeutas, lidar com a crise dentro do imenso potencial criador que ela carrega.


O paciente nos chega imerso em dor. Até que ele descubra, através do trabalho do luto, o quanto foi construído a partir da perda, existe um caminho que nos cabe conhecer o percurso para que possamos ajudá-lo.


Diante do impacto, do susto, do sentir-se desamparado e perdido, perdem-se também as antigas referências. Os paradigmas não podem mais ser os mesmos.

    A TRAGÉDIA HUMANA

Dante, vivendo a crise do exílio, escreveu A Divina Comédia. Frente à angústia da ruptura, ele relata , em sua obra, o caminho de todos nós diante do desespero habitual nessas ocasiões .

Usaremos o grande poeta como analogia simbólica e para o entendimento dos processos que ocorrem em fases críticas da vida.

Ele está "perdido em uma selva escura", onde o indivíduo ou prossegue, ou desiste e é destruído. Recorre , então, à companhia de Virgílio. Ao ser assaltado pela angústia, o ser humano evoca modelos que já conheceu.

Busca, em sua subjetividade, a memória de alguém ou algo que lhe sirva de referência, interna ou externa. Pode ser um terapeuta, alguém que, como Virgílio, acompanhe o processo.

    A JORNADA

No caminho que se percorre a partir de toda situação nova, desconhecida, caótica, revivem os nossos fantasmas, temores e resistências. Fantasias de rejeição, medo da loucura, de perder o controle, de morrer.

Diante desses fantasmas, o sujeito está fragilizado e se descobre outro completamente diferente. Ficaram para trás as sensações de segurança, de invulnerabilidade, de imortalidade. Está tomado pelo horror.

Dante está cercado de feras, quando tenta fugir de uma, outra surge. Está sem saída. Prestes a sucumbir, surge a alma de Virgílio, que propõe ser seu guia por um novo rumo.

Quem acompanha, está junto. Virgílio diz: "Convém fazeres uma nova viagem".

E partem rumo ao Inferno, a primeira fase do percurso que levará Dante ao Purgatório e, por fim, ao Paraíso. O Inferno e o purgatório são a nossa crise, que tem uma direção, um desenrolar do qual, uma vez desencadeado, não podemos fugir. O terapeuta será o companheiro de viagem, não irá viver a crise pelo paciente mas o ajudará a conter a sua dor e enfrentar seus monstros.
No Inferno-crise, existe a possibilidade de se soltarem amarras das perdas não elaboradas. Virgílio-terapeuta será o estímulo para que o movimento continue.

    PASSOS

O Inferno de Dante tem nove patamares. Na adolescência, ele tivera uma namorada, Beatriz, que casa com outro e morre três anos após. No primeiro patamar, encontra Beatriz.

Frente à crise surgem, em primeiro lugar, os nossos lutos não resolvidos. Toda perda nos remete a outras que não foram elaboradas. O indivíduo sente-se só, sem esperança, vítima, absolutamente abandonado na dor. Impotente.

Os outros sentimentos estão mergulhados, adormecidos pelo sofrimento. É importante que se respeite esse momento, sem imediatismo, para que não se aborte a possibilidade restauradora do luto.

Estas etapas são resumidas nas palavras escritas na porta do Inferno :
"Por mim se vai ao abismo das dores eternas"... "Deixai todas as esperanças, ó
vós que aqui entrais".

Dante hesita e teme, mas Virgílio segura sua mão e o exorta a prosseguir.

    NEGAÇÃO

Diante dessa ruptura, tende-se a negar a perda. Dante poderia ter continuado indefinidamente a lamentar, ou elaborar aquela perda e seguir em frente.

O indivíduo nega, recusa-se a ver a realidade, mas a realidade se impõe. Pessoas existem que se perdem nesse momento e que permanecem negando à despeito das evidências da perda. Um doente poderá não assimilar o diagnóstico de um câncer e anular, ou retardar, com conseqüências
desastrosas, os esforços médicos para tratá-lo. Outro poderá desconhecer o sentimento pela morte de alguém próximo e agir como se essa pessoa não tivesse morrido, em evidente processo dissociativo.

    REVOLTA

Começa a etapa da ira - porque eu? De muita inveja - todo mundo está bem e eu não!

Mal direcionada esta revolta poderá voltar-se contra o próprio indivíduo, com o risco de suicídio. Ou transformar-se em prostração e desistência, nas quais alguns estacionam e se aniquilam.

Dante escuta "blasfêmias horríveis, palavras de dor, gritos de cólera" dos seres torturados pelos ferrões de enormes insetos, que refletem os agulhões que aferroam as entranhas daqueles que padecem. E a raiva parte em todas as direções: contra Deus, contra os pais que os fizeram nascer, contra a sorte, contra si próprios.


No mito de Sísifo, a pedra, que era empurrada até o topo do monte, caía de volta e precisava ser empurrada outra vez, indefinidamente. Na crise, a pessoa tenta adiar, mas a pedra volta, ainda mais pesada.
Esta fase é muito importante, porque está repleta de energia. Se a revolta for ouvida, consentida, não criticada mas, aos poucos, canalizada, irá permitir ao indivíduo que prossiga sua viagem pela selva escura.

    NEGOCIANDO

Começa-se a negociar. Procuram-se todas as formas de tratamentos.

Promessas são feitas e nem sempre cumpridas, sobretudo se consideradas ineficientes. É uma fase errática, onde o indivíduo sente-se em um labirinto. Ele está entre um passado que perdeu e um presente sem sentido.

Dante vê a "borrasca infernal" das "almas em correria". Nelas, em lugar algum o sujeito encontra paz. Os sentimentos são contraditórios e muitas vezes se confunde atividade com agitação.
"Não há dor maior que recordar os momentos felizes na desgraça" diz o poeta.

É necessária a manifestação dessa profusão de emoções.Nessa fase, em terapia, a expressão artística é fundamental.

    DEPRESSÃO

A depressão pode assumir, na crise, duas formas principais.


Uma delas é a tristeza natural que acompanha o luto. O indivíduo se recolhe e precisa desse tempo para juntar forças . Esta fase é crucial, pois nela o indivíduo se desfaz dos antigos vínculos para ligar-se a objetos novos e passar para a etapa seguinte, a da aceitação.


Outra forma é a melancólica, onde o indivíduo morre, a nível real ou simbólico, com a perda. Sente-se tão identificado com o que perdeu que não consegue sobreviver. Ele está paralisado, rígido, cristalizado. Dante, neste momento, é ameaçado de ser convertido em pedra pela Medusa e, mais uma vez, salvo pela intervenção de Virgílio.


O terapeuta sente-se também, ás vezes, presa de inquietações e dúvidas. É fundamental a diferenciação que possa identificar a contratransferência, pois muitas vezes, diante da impotência do outro, o terapeuta pode reagir com impotência ou onipotência. Virgílio afasta as almas que tentam agarrar-se a ele e a Dante: "Fica no pranto e no luto!", querendo dizer da ajuda que não implica em enlutar-se junto.

    SUICÍDIO

“Volta-se o violento, muitas vezes, contra si mesmo", diz Dante, que vê os suicidas transformados em árvores, permanentemente torturadas por aves famintas que as devoram.
Toda crise gera uma alteração profunda na imagem que se tem de si, inclusive na imagem corporal. A alteração na mente traz uma alteração no corpo e vice-versa. O indivíduo ganha raiz, se agarra. A falta, em lugar de gerar desejo, produz imobilidade. Quando o indivíduo não se sente em condição de vivenciar uma perda, o corpo se transforma no palco dessa angústia. E, como ele não consegue acabar com a angústia, destrói o corpo. "Corre, morte, em meu socorro!”.

Virgílio não faz promessas de salvação. O terapeuta precisa confiar na capacidade de transcender-se do seu cliente, sem prometer-lhe o impossível.

Não carregar as suas pedras, pois ele arranjará outras. Não estimular a dependência, mas entender a profundidade das palavras : "Poderás contar com o meu auxílio". Em nenhum momento de uma crise a convicção do apoio terapêutico é tão fundamental quanto neste, quando o indivíduo perdeu todas as reservas de força e esperança.

    FUNDO DO POÇO

Para sair de uma crise, é necessário entrar nela. Caso contrário, há um desvio e amanhã se está em uma selva mais escura ainda.

"Antes, é necessário que eu desça ao fundo desse abismo".
Dante chega ao fundo do poço. Resta-lhe subir, o que faz através do próprio corpo de Lúcifer, até atingir a praia do Purgatório.

    ACEITAÇÃO

A aceitação é vida, oportunidade, transcendência.


A situação limite leva a alternativas desconhecidas, ao encontro de características que só esta vivência revela. No fel do desespero, o ser humano se descobre, se desvela.


Diz Dante: "Lá encontrei uma boa e nova turma".


No Purgatório, o indivíduo libertou-se do seu Sísifo ; ele segura a pedra nas costas e anda. Com ela , por causa dela e a despeito dela.


Um bom vínculo terapêutico e humano reproduz a situação mãe - filho, que
promove o crescimento.


Segundo Shakespeare, "É importante saber a diferenciação entre dar a mão e aprisionar uma alma". Dar a mão, estar com você. Não prometo uma certeza que não tenho. Só prometo estar ao seu lado.


Virgílio despede-se de Dante : " Se quiseres subir aos Céus, outro será o seu guia".


A partir deste momento, o terapeuta não é mais necessário, o indivíduo já tem dentro de si a semente que irá frutificar até o encontro de nova borrasca.


A pedra já foi lapidada, ela não é mais uma estranha, é uma extensão do corpo. Já foi integrada, assimilada. Significa a inclusão do novo, enquanto criação.


Morre o velho para nascer o novo. Para virar adulto, morre o adolescente.


É a noção de renúncia, de saber negociar com a existência. Vida e morte como faces de uma mesma moeda. Um ego forte para morrer é um ego forte para viver e para o qual o critério de saúde é o da permanente impermanência.


O movimento é o de uma espiral em ascendência, é o movimento da vida, onde o que perde cresce com a perda. O ser humano não nasce para a petrificação, mas para o turbilhão da vida.
Caminho é processo, é caminhada, é uma construção que se faz no caminhar.


Simone Mello Suruagy - Psicóloga