O Fator Psicológico nas Doenças do Coração

Introdução

Comumente o paciente cardíaco é um indivíduo tenso, que apresenta dificuldades para expressar suas emoções. Geralmente é portador de uma história de vida onde a hostilidade contra figuras do passado e inferioridade frente às mesmas são deslocadas em direção a metas de vida altamente rígidas. Essas metas são perseguidas com firmeza, freqüentemente atingidas, porém jamais suficientes para a satisfação do indivíduo. Trazem porém, um alívio momentâneo para aqueles sentimentos de base, através da sensação oposta, ou seja, de onipotência.O ponto inicial do atendimento psicológico ao paciente portador de uma cardiopatia, reside na precisa compreensão da psicodinâmica subjacente a essa afecção.O presente estudo visa abordar alguns pontos básicos dessa psicodinâmica, importantes para o traçado de um esquema referencial de atendimento.Daremos especial atenção à "personalidade coronária" ou à "personalidade de infarto" e 'a "personalidade hipertensa" pois a atuação rápida, se possível já a partir da UTI, é essencial para a devolução do indivíduo a um cotidiano mais saudável.
Considerações PreliminaresAs enfermidade cardiovasculares são a causa de grande número de falecimentos, sobretudo a partir dos 55 anos. Porém existe a evidência alarmante do surgimento dessas afecções em fases da vida cada vez mais precoces. Nessas doenças, participam de modo importante ou decisivo, fatores psíquicos.Como é lógico, uma doença cardíaca pode surgir de um modo não psicossomático, bem como podem ocorrer fatores psíquicos agudos que provoquem a manifestação de alterações orgânicas que já existiam em estado latente (como a aparição de crises de angina do peito e infarto após sobrecargas psíquicas).A própria sabedoria popular empresta ao coração o papel de veículo da expressão das nossas emoções. Frases como "sangue quente", "alegria no coração", "coração pulando de satisfação", "amando de todo coração", "coração triste", "peso no coração", "coração disparando de medo", "coração duro", "sem coração", "sangue frio" e tantos outros, indicam a repercussão cardíaca que podem ter nossos sentimentos.Sabemos que a angústia está em íntima relação com as modificações fisiológicas, e a neurose de angústia é a mais freqüente desordem da vida civilizada. A angústia, entretanto, nem sempre é reconhecível como tal, e pode às vezes eleger o corpo, em suas várias funções, como seu porta-voz.Do ponto de vista psicossomático, podemos considerar o efeito das emoções sobre o sistema cardiovascular sobre os seguintes aspectos:    o efeito da angústia sobre o coração normal (neurose cardíaca)
    o efeito da angústia sobre o coração doente
    a relação das emoções com a hipertensão e com a doença coronária (personalidade coronária", "personalidade de infarto" ou "doença dos homens de empresa").Angústia e Coração Normal (Neurose cardíaca)A neurose cardíaca surge nas pessoas predispostas que foram submetidas a um fator precipitante. Este fator pode ser desde a mais leve sugestão de que o coração não está bem, à ocorrência de algum caso dramático de doença cardíaca ou morte súbita entre os parentes ou amigos do paciente. Ou mesmo o aparecimento de algum sintoma que chama a atenção do paciente para o seu coração e o leva a duvidar de sua integridade, como alguma extra-sístole ou palpitação e dispnéia após algum esforço. Também alguma perturbação demorada, como uma profunda tristeza ou angústia prolongada. Em alguma famílias, os distúrbios do coração são comuns, com longo uso dessas afecções como lucro secundário. A criança que cresce neste meio tenderá, por identificação, a adotar o mesmo mecanismo.Esses pacientes possuem como ponto comum uma grande quantidade de angústia em sua formação, e o que de início pode ser apenas um mal-estar na região cardíaca, poderá desenvolver-se em outros sintomas que podem conduzir à completa invalidez.
span style="mso-bidi-font-style: italic;">Sintomas Principais:    dor e sofrimento na região cardíaca;
    dispnéia e fadiga. A respiração curta freqüentemente tem um significado simbólico. O paciente cuidadosamente interrogado poderá revelar que a sua "respiração curta" é uma sensação de "peso no peito", da qual poderá livrar-se falando de suas perturbações;
    taquicardia e outras perturbações do ritmo cardíaco. A "consciência do coração" freqüentemente conduz a um diagnóstico equivocado de cardiopatia orgânica. Assim como o coração pode acelerar-se pela emoção, também pode ser retardado, e ocasionalmente durante as crises de angústia, especialmente nos pesadelos, ocorre grande lentidão do batimento cardíaco. A palpitação é algumas vezes exatamente o primeiro sintoma da neurose cardíaca. Certas condições de vida, como violenta ou prolongada emoção, fatores como o abuso do café e do fumo, provocam uma opressão ou batimento acelerado, que é o suficiente estímulo para chamar a atenção para o coração e daí em diante o paciente sofre de palpitações;
    zumbido nos ouvidos;
    tonteira;
    rubor;
    nervosismo, instabilidade.Embora o neurótico do coração normal possa sofrer muito subjetivamente e mesmo ter uma perturbação da função cardíaca, o coração, na maioria das vezes, permanece estruturalmente são. Desnecessário acentuar a necessidade de criteriosa pesquisa da causa orgânica. Porém quando a doença cardíaca orgânica foi eliminada, pode-se pensar com certeza na causa psicológica, e direcionar a partir daí a psicoterapia.
Angústia e Coração doenteO paciente neurótico que tem uma doença cardíaca pode adicionar uma verdadeira carga ao trabalho de seu coração, seja através de constante tensão de ordem psíquica, seja por meio de episódios agudos de ordem emotiva. Isto pode precipitar um agravamento que poderia não ocorrer, não fosse a tensão psíquica.Assim, as crises emocionais podem ter influência na evolução da doença. Portanto, a intervenção psicoterápica pode abreviar a convalescença ou retardar os processos degenerativos, ao passo que uma carga de angústia reprimida, resultando numa tensão muscular prolongada ou outras alterações somáticas, podem constituir para o órgão uma sobrecarga muito pesada que, com o tempo, desenvolve uma perturbação funcional.
A "Personalidade Hipertensa" e a "Personalidade de Infarto"Duas enfermidades psicossomáticas, a hipertensão arterial e a chamada "doença dos homens de empresa", onde se desenvolve a "personalidade coronária" ou "personalidade de infarto", merecem uma atenção especial, pela repercussão da personalidade pré-morbida no desenvolvimento da doença e pelo risco maior que elas provocam, a insuficiência coronária e o infarto do miocárdio.
Em ambas as enfermidades participam, de modo decisivo, os fatores psíquicos. No entanto, enquanto nem todas as hipertensões essenciais são , de algum modo, de origem psicossomática, quase todas as enfermidades dos "homens de empresa" o são desde que se considere tal enfermidade caracterizada pela tríade seguinte:    gênero de vida típico
    insuficiência coronária
    ameaça de infarto do miocárdioO reconhecimento de uma doença cardíaca provoca, em primeiro lugar, um choque na representação que o indivíduo tem de si mesmo, e toda a percepção do que se sinta capaz de fazer é alterada. Esta representação é forjada na infância, quando a imagem que o indivíduo tem de si próprio é originalmente uma imagem que o outro lhe empresta. Assim, o indivíduo vê-se a si próprio como em princípio ele foi visto pelos olhos do outro.No indivíduo que vai desenvolver posteriormente uma "personalidade coronária", existe inicialmente um desejo, sempre frustrado, de ser amado pelos pais. Em sua infância não teve jamais aquele sentimento de segurança básica necessário para o desenvolvimento normal. O desejo de conquistar amor impulsiona e estimula o indivíduo a buscá-lo mediante um esforço dirigido para a consecução de realizações extraordinárias que, inconscientemente, o fará estimado e respeitado pelos pais. Esse tipo de pessoa alcança sempre uma determinada meta, mas esta se acha representada pelo êxito e não pelo amor. Troca o amor por êxito, como se fosse faminto, sedento e dependente de realizações. E, por último, chega a não conhecer nada além do sucesso, desde que o amor já não lhe causa impressão alguma.A partir desta carreira por uma meta imaginária e substituta, se desenvolve o seu acelerado ritmo de vida, que se reflete literalmente em todas as suas atividades. No trabalho é insaciável e incansável, mas cada êxito o leva à busca do êxito seguinte, e aquele que passou já não é satisfatório o bastante. Planeja o seu lazer buscando o meio de transporte que mais rapidamente o conduza ao seu destino, mas quando o alcança já se sente inquieto por permanecer inativo e anseia para voltar correndo para o trabalho. Apela ora para estimulantes, ora para soníferos. Consiga ou não o êxito, não encontra jamais satisfação, pois o que busca á amor materno e segurança.Paradoxalmente, entretanto, o que triunfa se expõe à inveja dos demais, rodeia-se de solidão. Tenta superar então tal situação da única maneira que dispõe; acelerando seu ritmo de trabalho e propondo-se novas metas a conquistar. Transforma assim a impotência em onipotência, a necessidade de dependência no triunfo sobre os demais, na independência. Os sentimentos básicos, porém, continuam no inconsciente retroalimentando o ciclo vicioso que aprisiona este indivíduo e do qual ele não deseja nem pode se livrar.Desta forma, a ansiedade por conseguir é acrescida por outra, a ansiedade ante o fracasso. Não há dúvida que tal gênero de vida tende a sobrecarregar o sistema circulatório e desempenha assim um papel importante na aparição da doença coronária.Advertimos que não é posição do indivíduo em si que é patógena neste sentido ( a exemplo de políticos atuais que morrem por velhice), e sim, antes de tudo, o gênero de vida psicodinâmico que o força a permanecer constantemente em atividade e a colocar-se cada vez mais exigências, sentindo-se efetivamente tão poderoso e imortal que, inclusive, deixa de perceber todos os sinais de aviso que representam os primeiros sintomas somáticos.O futuro hipertenso, por outro lado, tem uma situação familiar característica. Está submetido à pressão de tendências agressivas cronicamente vigentes, mas jamais está consciente deste fato, já que o reprime. O ambiente que cerca o indivíduo se acha caracterizado pala presença de grande insegurança e tensão. Muitas vezes os pais apresentam intensas e súbitas explosões emocionais. A criança se torna atemorizada, angustiada, afogada em sua atmosfera ameaçadora e, sobretudo por causa do imotivado e inexplicável de tais explosões patenas, fortes impulsos agressivos são desenvolvidos na criança. Mas como tais agressões estão proibidas, não apenas pelo amor que os pais também despertam, como receberiam de volta mais agressão, a conseqüência é que estes impulsos são reprimidos. As agressões não descarregadas para o exterior provocam, nestes casos, a hipertensão.O estilo de vida do hipertensivo diverge em alguns pontos do portador da "personalidade coronariana "e converge em outros. No começo, é possível que também consiga êxitos, mas é por natureza mais inibido e raras vezes consegue uma posição que lhe proporcione expressão do sentimento agressivo interior.Busca dominar as dificuldades que surgem em seu caminho mediante a repressão dessas tendências agressivas. Apresenta uma constante procura de atividade, de conseguir rendimentos, um sentimento de dever que lhe faz aceitar todas as exigências. Neste sentido guarda grande semelhança, ao menos exterior, com o "homem de empresa".Mas sempre fica, em nível de resultados, no meio do caminho. Também não sabe dizer não às tarefas que lhes exigem, e assume todas as cargas.Os mecanismos psíquicos do hipertenso, nesta fase, se assemelham aos que se observam nas tendências ao suicídio. Nos dois casos há um paralelismo: de início, um inibição da agressividade, que em seguida se volta contra si mesmo. As conseqüências dessa evolução não se limitam, de forma alguma, à hipertensão, mas através dos transtornos da irrigação determinam outros distúrbios circulatórios orgânicos, sendo a causa de numerosos falecimentos, por colapso, apoplexia e labilidade cardíaca.Enquanto no homem de empresa é o desejo de ter uma satisfação sucedânea que o faz perseguir quantas atividades lhe surjam (sendo também muito capaz de descarregar sua agressividade pondo sua posição em jogo), o hipertenso "não sabe dizer não" por falta de capacidade de opor-se ou relaxar-se e devido a isso assume cargos que não fazem senão incrementar a pressão de sua agressividade inconsciente.
Estas semelhanças e diferenças determinam um fenômeno interessante: são comuns as associações (simbioses) entre os "homens de empresa" e os hipertensos, onde um utiliza o outro com veículo de suas patologias. O "homem de empresa" precisa do hipertenso para utilizar o seu potencial de trabalho e passividade, enquanto o hipertenso precisa do "homem de empresa" como aquele "ego ideal" que consegue descarregar toda agressividade e realizar todas as metas. Claro que ambos serão frustrados, pois o ritmo de trabalho imposto pelo "homem de empresa" tenderá a retroalimentar a agressividade do hipertenso, e o "homem de empresa" jamais terá do hipertenso o afeto que inconscientemente anseia. Uma sugestão de atuação psicológica frente a pacientes que sofreram infarto agudo do miocárdioA ocorrência de uma enfermidade psicossomática crônica só surge se ocorrem diversos fatores patógenos.Tanto na hipertensão quanto na enfermidade dos "homens de empresa", atua sem dúvida um desenvolvimento neurótico crônico. Em ambas as afecções, a moléstia se evidencia quando o fator representado pelo desgaste psicológico é acelerado de maneira decisiva e reforçado por um gênero de vida patológico, psicodinamicamente determinado. Ambas vão aparecendo de modo cada vez mais precoce e mostram uma tendência a provocar a morte de indivíduos por elas afetados quando ainda relativamente jovens.Se o ritmo acelerado do "homem de empresa" supõe uma sobrecarga para o coração e as artérias coronárias, no hipertenso o deslocamento da agressividade para si mesmo afeta todo o sistema vascular.Seria importante serem adotadas a tempo oportuno medidas profiláticas contra o avanço da doença, mas nas duas enfermidades os sistemas de alerta são em principio completamente ignorados e/ou são minimizados. O que padece da "personalidade coronariana" reprime estes sintomas, que dizer, nem sequer os sente, já que não está disposto a mudar seu esquema de vida, e assim os avisos premonitórios se fundem na corrente de um ritmo de vida cada vez mais rápido. O hipertenso se dá conta deles, mas lhes retira a importância, por razões conscientes e inconscientes, já que ceder a esses sintomas lhe parece incompatível com o seu sentimento de dever, além da pressão inconsciente que lhe autodireciona a sua agressão.A possível ocorrência de um infarto do miocárdio nesses pacientes vem determinar um crise extremamente desesperadora, pois todas as defesas nas quais sempre se refugiam entram em falência repentina.
A sua entrada no CTI marca um momento decisivo da atuação do psicólogo, desde que a elaboração desta crise será determinante na evolução futura desse indivíduo. Uma má evolução poderá levar ou a uma mudança hipodimensionada do autoconceito, com fantasias de invalidez, incapacidade, medo e fuga, ou à manutenção do esquema anterior ao infarto, com risco evidente de recidivas. O atendimento ao enfartado na UTI objetiva:    Alívio da angústia inicial através do trabalho sobre as fantasias mórbidas. O estado de expectativa e busca de respostas podem agravar virtualmente o estado somático do paciente, pois a sua elaboração de fantasias e a tensão emocional levam-no, em sua dinâmica total, a um "déficit" funcional, caracterizado pelos quadros reativos, stress, e respostas somáticas como o aumento da pressão arterial, anorexia, diminuição do limiar de resistência à dor, etc.
    Abordagem psicoterápica de possíveis síndromes psicológicas (exemplo: depressão)
    Colocação do paciente frente ao seu estado real, limitações e possibilidades.
    Orientação e apoio nas fases em que o paciente atravessará até a sua alta da UTI. Esse tipo de orientação visa colocá-lo como participante de seu processo de tratamento e a minimizar o impacto da dependência e impotência que ele experimenta.Por outro lado, é importante que, já no hospital, se inicie o trabalho de ressocialização e reintegração do indivíduo, observando suas limitações físicas a curto, médio e longo prazo.Um atendimento Psicoterápico profundo é fundamental logo após à saída do paciente do Hospital, antes que se restabeleçam as antigas formas padronizadas de agir, dando vazão a novo ataque muitas vezes fatal da doença. Esta é a hora importante para o estabelecimento do processo Psicoterápico, pois o paciente está abalado em seus esquemas distorcidos e mais suscetível a mudar seu enquadre de vida.O trabalho multiprofissional integrado nos parece ser o ideal no tratamento dos pacientes enfartados, posto que a atenção globalizada ao indivíduo, além de não dicotomizadora, é integradora e possibilita o amplo levantamento de todos os condicionantes, passados e presentes, daqueles enfermos em particular, indispensáveis para o estabelecimento de um esquema referencial futuro. Este esquema objetivará uma reformulação das pautas anteriores daquele indivíduo, e precisará incluir o manejo das razões inconscientes que o levaram a um ritmo de vida no qual o coração funcionou como órgão de choque.
Um paciente bem informado, orientado, cônscio de seus limites e potencialidade e capaz de rever, sem distorções, o seu processo psicodinâmico é o melhor recurso preventivo que possuímos no sentido de evitar uma nova crise ou o agravamento do estado crônico em que ele vive.

 

Psic Simone Mello Suruagy